querido o,

escrevo, inquieta. pois apesar de amar as palavras, e talvez mesmo por isso, também perturba-me o esvaziamento, a instrumentalização e a perversidade que as tomam nesses nossos tempos. sim, somos sujeitos tecidos por palavras e com elas temos tantas vezes erguido muros, falado sozinhos, ostentado supostos conhecimentos, constrangido nosso mundo…

diante dessa ruína da palavra, como seguir falando? Francis Ponge nos propõe: “falar contra as palavras”. poderá ser a ausência da própria palavra, uma linguagem de resistência, uma afronta àquele ruído vertiginoso do mundo contemporâneo? não sei, mas acredito no poder do silêncio de suspender o tempo, de aguçar o sensível, de ativar a escuta - palavra tão cara ao ofício do ator. escuta que permite o jogo, que nos coloca em disponibilidade para ouvir e perceber o outro, os objetos, o som, o mundo.

é mesmo isso que me atrai no teatro e na arte: essa espécie de deslocamento sensível que parece operar também no silêncio. uma certa abertura ao estranhamento do mundo imposto para então criar e convocar, em cena, uma vida outra.

espero que possamos nos encontrar em breve, que possamos jogar juntos e que falemos de resistência, de teatro, do humano. sem palavras.
(...) Viesse
viesse um homem
viesse um homem ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
Patriarcas: ele poderia
se falasse ele deste
tempo, ele
poderia
apenas gaguejar e gaguejar
sempre –, sempre –,
continuamente.

[“Tübingen, Janeiro”, Paul Celan, tradução: Leila Danziger]
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?

[trecho Cantiga de Enganar, Carlos Drummond de Andrade]
ps: clique na foto para ver um jogo sem palavras que gosto muito.